Grande parte da urgência existencial que vivenciamos quotidianamente é devida à urgência que temos em controlar e compreender o tempo. Interpretamo-nos, a nós mesmos, como móveis em uma trajetória linear e a isso resumimos a vida: somos reféns de uma conspiração cronológica, percorrendo uma sucessão de fatos organizados em antes, durante e depois e, nessa organização, é que nos damos conta de nossa própria natureza, porque um indivíduo só pode dizer de si mesmo aquilo que é quando conhece aquilo que foi e que tem sido, para eventualmente pretender o que será.
Encontramo-nos imersos num tempo que se estende para muito além de nós, ao passo em que não apenas conhecemos nossa própria identidade com base naquilo que nos é pregresso, como também conhecemos o mundo que nos cerca pelo registro do tempo daquilo que não somos: o tempo da Terra, das espécies, das sociedades, das culturas, das famílias, dos seus pais. Lembrar-se daquilo que você comeu ontem serve para construir sua identidade tanto quanto saber como foi que seus pais se conheceram, como foi que seus avós chegaram ao Brasil ou o que distanciou o homem do macaco.
Porque a noção disso que nós somos, individual e coletivamente, é construída pela lógica de causa e consequência que decorre da composição dos fatos do universo em uma sequência cronológica linear, concedendo à existência consciente o alicerce sólido em que ela se enraíza: a continuidade. Sim, o entendimento da nossa própria existência procede do registro dos fatos passados, que comprovam o presente pelo sentimento de continuidade.
Entrementes, é importante que se coloque uma questão: somos nós que estamos dentro do tempo, ou é o tempo que está dentro de nós? Em outras palavras: existe tempo fora do cérebro?
Parece-me que não. Explico:
Consideremos um cenário qualquer em que não haja a presença de um observador dotado de cérebro. Tomemos como referencia o “ponto de vista”, se é que podemos chamar assim, de um componente sólido qualquer desse cenário e tentemos perceber como seria o tempo sem o cérebro. Por exemplo, uma pedra, numa montanha, que cai e se choca contra outra pedra. Trivial. Um fato, o choque, divide o cenário, a montanha, em dois períodos distintos, o antes e o depois. Funciona assim quando olhamos para as ocorrências da montanha munidos de nosso cérebro humano. No entanto, para a pedra: o que, de fato, aconteceu?
Para a pedra, não aconteceu absolutamente nada.
Na ausência de um cérebro que registre os fatos, nenhum fato existe e, portanto, não há tempo. Se a pedra fosse capaz de se render conta da própria existência, sem contudo ser capaz de guardar memória do transcurso das coisas, ela veria a si mesma antes, durante e depois do choque contra a outra pedra de forma fracionada, e o comprometimento do sentido de continuidade da vida extinguiria o sentido do tempo e a validade dos fatos, uma vez que uma pedra que não conhece o passado só pode estar no presente infinitas vezes até que deixe de ser uma pedra, e inclusive esse tipo de existência seria algo muito próximo daquilo que nós chamamos de eternidade e que gostaríamos muito que existisse (mas que não existe): porque quem não tem passado e só tem presente experimenta vidas tão pontuais e breves, em sua descontinuidade, que o único momento que lhe pode ser conhecido é o momento do sempre.
E aqui está uma das grandes funções do cérebro humano e também dos cérebros de outras espécies.
O armazenamento de informações, portanto, por meio das funções mnêmicas de nosso cérebro, apresenta importância que transcende a simples disponibilização de conhecimentos e conteúdos pretéritos para a execução de tarefas no presente. A memória nos permite evocar estes conteúdos à consciência para que a própria consciência exista e para que nós, no contexto dos fatos, possamos existir também. Os fatos são guardados no cérebro do observador e fora do cérebro não há registro de nada. Fora do cérebro, encontramos os corpos materiais do universo à deriva em meio às circunstâncias, constituindo uma forma latente e eterna de existência, sem a possibilidade de tornar-se alguma coisa, porque aquilo que sempre é apenas o que é agora, nunca será nada, por jamais ter sido outro.
O presente sem passado é vazio.
E o tempo sem cérebro não existe.
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